VINHO DE TALHA
- José Rosa
- 13 de jul. de 2018
- 6 min de leitura
Em Portugal, o Alentejo tem sido o grande guardião dos vinhos de talha, a técnica de vinificação em talhas de barro trazida pelos romanos há mais de dois mil anos nunca deixou de ser praticada no Alentejo.

Será que é apenas mais uma moda? Como tantas que de tempos a tempos aparecem no mundo do vinho… Este é um dos receios que alguns produtores nos manifestaram, temendo que se banalize a designação Vinho de Talha e adultere a tradição ao misturá-la com novas técnicas, dando ao consumidor ‘gato por lebre’.
Uma grande preocupação dos produtores deste vinho é manter a tradição, considerada um patrimônio alentejano:
“ Não podemos vender este vinho a dois euros a garrafa ou dizendo que só porque passou por talha é vinho de talha. Tem que se seguir o que era feito antigamente”, alerta Domingos Soares Franco, enólogo da Adega José de Sousa, em Reguengos de Monsaraz.
Mas hoje há já grandes produtores, como o Esporão, Casa Alexandre Relvas, Cortes de Cima e Adega José de Sousa, entre outros, a apostarem nesta técnica milenar, de forma mais ou menos tradicional. E está em preparação o processo de candidatura do Vinho de Talha a Património Cultural e Imaterial da Humanidade.
Todavia alguns produtores são mais liberais e consideram que o que é muito interessante neste renascimento do vinho de talha é a interpretação que cada enólogo faz de uma técnica ancestral. No entendimento de alguns enólogos respeitar a tradição não implica fazer tudo igual. Ressaltam, ainda, que entre as várias regiões e vilas alentejanas sempre houve algumas diferenças nos métodos de fazer este vinho milenar.
Ao longo dos tempos, a técnica de fazer vinho em talhas foi sendo passada de geração em geração, de forma quase imutável. Ainda assim, não existe apenas uma maneira de fazer vinho em talhas, variando ligeiramente consoante a tradição local.
ORIGEM
A ânfora de barro é um dos mais antigos recipientes para conservar e transportar líquidos. Na sua versão de maior dimensão, a talha, serve desde há mais de dois milénios para fazer vinho, uma tradição que o Alentejo nunca perdeu.

Segundo a tradição, só depois do dia de São Martinho, 11 de Novembro, é que o vinho pode sair das talhas. O vinho estava pronto a consumir e bebia-se direto da talha, colocando uma torneira de madeira no batoque, a rolha que fecha um buraco na parte inferior. Filtrado pelas massas, chegava inicialmente turvo e depois, gradualmente, mais límpido.
Não existe apenas uma forma de fazer o vinho de talha. A maneira mais clássica de elaboração do vinho de talha, tal como o ilustre agrónomo António Augusto de Aguiar deixou registado em 1876, não passa por prensa nem lagares fechados, servindo muitas vezes o próprio pavimento das adegas para a pisa e esmagamento da uva.
As adegas, muitas vezes com arcos altos, têm janelas grandes por onde a uva é descarregada diretamente para o pavimento que é nivelado com um declínio para o centro de forma a que o mosto siga, deslizando, para uma cisterna ou talha enterrada.
Dados históricos indicam que a talha existe desde a época romana, ou seja, há sensivelmente mais de dois mil anos. Assim aponta, por exemplo, o fato de sabermos por gravuras que os romanos vinificavam e guardavam os seus vinhos em potes e vasos semelhantes, ou mesmo iguais, às talhas que ainda hoje encontramos em Portugal, de tal forma que, em 1876, João Ignacio Ferreira Lapa, no seu “Relatório sobre os processos de vinificação dos principais centros vinhateiros do sul do reino”, chamou à vinificação em talha no Alentejo o “systema romano” distinguindo-o do “systema de feitoria” que incluía a utilização de lagares e que era comum em outras regiões do país.
Segundo os etimologistas, o topónimo de talha deriva do latim “Tinalia” que significa vaso ou vasilha de dimensões grandes. Uma talha é, portanto, um pote de barro, mais ou menos poroso de acordo com o tipo de argila de que é feito, com o destino de permitir a fermentação de mostos vínicos e posterior armazenagem de diversos produtos líquidos com destaque para o vinho e azeite. A talha apresenta-se com tamanhos e feitios diferentes, de acordo com a prática do mestre oleiro e do estilo da localidade onde era produzida.
Talha sim, ânfora não!
Muitos vinhos da talha, em Portugal e noutros países, são identificados como sendo de “ânfora”. A expressão, diz Virgílio Loureiro, especialista em vinho de talha, não é correta. Talhas são recipientes muito grandes, com capacidade para “300, 400, 500 litros”, enquanto as ânforas eram usadas pelos romanos para o transporte de líquidos e não ultrapassariam os 20 litros. “Portugal devia ter orgulho no nome talha”, afirma Virgílio Loureiro, que defende que era importante “a integração entre arqueólogos, historiadores e gente do vinho” para se estudar mais a fundo a história, as tradições e as técnicas do vinho de talha em Portugal. “Um arqueólogo não sabe fazer vinho e um produtor não sabe de arqueologia. É preciso maior cruzamento entre as disciplinas.”
A TRADIÇÃO NO ALENTEJO
O vinho de talha está intrinsecamente ligado à história, à cultura e à vida social no Alentejo. Não é, portanto, uma tradição remota, mas algo que faz parte do dia-a-dia da população, sobretudo nas zonas mais rurais. O dia de S. Martinho, dia da “abertura das talhas”, é o momento mais alto na milenar relação entre o Alentejo e o vinho de talha.
A tradição da talha no Alentejo, trazida pelos romanos há mais de dois mil anos, nunca se perdeu, mantendo-se viva e presente em muitíssimas localidades da região. Ainda hoje, nas zonas do Alentejo com maior cultura de vinha, são inúmeras as casas particulares que conservam meia dúzia de talhas, onde se fazem vinhos para consumo próprio.
Frequentemente, as uvas para essas produções privadas são recolhidas dos cachos que, depois da vindima, ficaram esquecidos nas vinhas dos maiores viticultores, na maior parte dos casos com o consentimento tácito destes. O chamado “rabisco das uvas” é uma tradição ancestral que permite aos muitos que não possuem terra e vinha próprias, continuar a fazer e desfrutar do seu vinho.

Uma grande parte das tabernas do Alentejo (e entre elas muitas que se transformaram em restaurantes famosos) mantém a produção do vinho de talha. Aqui, não se trata já de vinificar para consumir em casa mas sim de uma atividade comercial alicerçada numa tradição. Os vinhos são feitos na taberna ou restaurante e vendidos no balcão ou à mesa, acompanhando também o crescente interesse dos produtores alentejanos pelos vinhos de talha e a instalação destas vasilhas de barro em algumas modernas adegas, levou à introdução no processo de algumas técnicas e equipamentos que visam facilitar o trabalho sem adulterar a essência da vinificação em talha.
COMO SE FAZ VINHO DE TALHA NO SÉCULO XXI?
O essencial da vinificação em talha pouco mudou em mais de dois mil anos. Em traços gerais, as uvas previamente esmagadas são colocadas dentro das talhas de barro e a fermentação ocorre espontaneamente.
O mundo do vinho tem evoluído muito. Hoje há formas sofisticadíssimas de o fazer e, no entanto, no meio do Alentejo há quem repita gestos que se fazem nesta região há dois mil anos.
O vinho da talha, como os romanos faziam, está na moda, em Portugal e no mundo.
Para quem tem formação de enologia moderna, talvez seja mais correto dizer desaprender. O maior desafio é conseguir não fazer nada. A tentação de intervir é muito grande. Estes são vinhos com uma intervenção mínima e características um pouco diferentes. Têm uma acidez volátil mais alta, algumas notas de oxidação, são vinhos que têm que ser explicados para serem compreendidos. São vinhos de nicho.
Outro grande desafio dos enólogos foi encontrar as talhas. Apesar de a produção de vinho nunca ter sido interrompida e de as talhas fazerem parte da paisagem de muitas tabernas tradicionais alentejanas, durante muito tempo o vinho da talha não foi valorizado.
Uma das consequências desse desinteresse foi o desaparecimento de imensas talhas, algumas destruídas pelos proprietários. A ironia é que hoje são os grandes produtores que andam à procura de talhas e já ninguém as fabrica.
A seguir foi preciso “pezgar”, ou seja, colocar o pez, ou cera de abelha, no interior das talhas, garantindo que estas mantêm a porosidade necessária para haver micro-oxigenação. A técnica, que já poucos dominam, consiste em revestir o interior com uma mistura líquida feita à base de resina de pinheiro (o pez) ou cera de abelha.
As uvas são desengaçadas “para evitar o excesso de aromas herbáceos” (a decisão de tirar o engaço, ou seja, a parte lenhosa, depende de cada produtor e cada região, havendo quem deixe pelo menos parte e quem o retire totalmente), depois esmagadas e por fim colocadas dentro da talha para fermentar.
Depois dessa fase, fecham as talhas com uma proteção de plástico. Havia quem pusesse azeite no topo para proteger o vinho, mas como o azeite ao oxidar pode ficar rançoso, alguns não o utilizam medo de contaminar o vinho. No entanto, há sempre alguma entrada de oxigénio e, logo, alguma oxidação. Isso nota-se particularmente, no caso dos brancos, na cor, muito mais dourada.

Durante a fase de fermentação é preciso mexer a manta, a parte sólida formada pelas películas e, eventualmente, o engaço dentro da talha pelo menos duas vezes ao dia. Sobe-se para uma escada ou para a borda da talha e empurra-se a manta para baixo, uma tarefa pesada mas essencial para evitar que a talha arrebente pela pressão do gás carbônico que se vai acumular no interior, empurrando a massa para cima até ela fazer um efeito de rolha.
Terminada a fermentação alcoólica, quando o gás se dissipa, as massas caem naturalmente até ao fundo, onde vão servir de filtro quando se extrair o vinho, após cerca de mais dois meses de maceração.
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